É de noite mas não tanto como na semana passada. Ainda há autocarros decentes a esta hora, daqui a dez minutos.
Todas as noites em que me deitei abatido / sem tenção de cair seleto nos teus braços / podia ter-te cedido uma ou duas ideias.
Reuniões, equipas, sugestões, projetos explanados e analisados, compromissos marcados e cancelados, desentendimentos por cansaço sem espaço, questões que só surgem porque não há foco no relato.
Sei exatamente o que fazer / quando fazer, como fazer / Sei os momentos em que calar / falar, olhar, desviar, lutar.
O que constitui a completa devoção ao outro / O que explica os condicionalismos que infliges / O que posso fazer para que ames um pouco mais.
A minha paixão pelo comboio vem de pequeno. Com tanto como quatro ou cinco anos, os meus olhos brilhavam no museu da locomotiva ou no denso das linhagens de Campanhã.
As pessoas são egoístas, são complicadas, são desnecessárias, são inconsequentes. Propõem alargar o sofrimento às pequenas execuções do dia, e fazem-no de forma prepotente e comiserada.
No último ano tornei-me um robô programável, e dificilmente sei mais do que fazer, repetir, olhar, desviar, voltar a olhar e esquecer.
Se há que falar de prepotência / chamem-me de todas as formas / Eu disparo rente e focado / estilhaço o teu coração.
É evidente que uma noite de céu limpo não é ocasião para celebrar a existência. Há por fim clarividência para aceitar a circunstância de que a felicidade é demasiado cara para durar tão pouco.