Um contacto intrusivo / A substituição

Chefe! Porque me contacta dessa forma intrusiva? Sabe que estou ocupado, e quando não estou, estou a planear estar, ora porque me encontro perturbado e não posso suportar esse estado por demasiado tempo, ora porque, filosoficamente, estar livre é estar morto, ser uma desilusão, cair na esfera da mediocridade. Eu fui ensinado dessa forma, em todas as cidades em que vivi incutiram-me esses valores, por isto cale-se, vá à sua vida, deixe-me fazendo o raio que seja que estou a fazer. E esses seus planos, a meus olhos, são abomináveis! Como ousa desafiar o meu estilo de vida!


Intitular um texto não é uma tarefa fácil. Geralmente, opto por um composto que emana do produto que as frases formaram, mas de quando em vez, como é muito meu costume, sobe-me o poder à cabeça e escolho um título mais curto, uma palavra potencialmente precedida por um artigo, como que dando a entender que se lhe sucederá uma grandiosidade que justifique de alguma forma uma escolha tão arrojada e geralmente desapropriada. A somar a isto, a substituição é uma tirada polémica, porque pode ser associada a uma sugestão de substituição populacional, que é uma tese que abomino, ou à ideia de que a vida é feita de impermanência e essa é a sua única constante. Não o negarei de forma absoluta, mas não é a isto que esta história pretende chegar.

Esta história tem, para variarmos um pouco, dois protagonistas. Neste momento, ainda não têm nome. Tal como não têm nome, também não poderemos chamar nome nenhum à relação que os dois vão construindo no seu local de trabalho. São solteiros, quase nos trinta, e lá acharam graça um ao outro; ele fazia-a rir com o seu humor inteligente, e ela encantava-o com os seus olhos púrpura-mar e o seu jeito terno de estar e de se preocupar com ele, o mundo e as coisas. Por outro lado, para sermos sinceros, ele estava farto de intriga, e ela estava naquela idade em que as pessoas vão fazendo filhos. Envolveram-se, física, emocionalmente, de várias formas, por vários dias, sem que recursos humanos soubesse; nesta época do mundo corporativo, nas empresas modernas, Não informes recursos humanos é o mesmo que Não digas à mãe que comi o bolo de chocolate. Se isto é recorrente, polivalente, e até faz com que cheguem com mais celeridade ao escritório, porque não tem nome? Muito simplesmente, porque nenhum deles o quis: este estado define-se por si mesmo, é a vida a acontecer em tempo real, e descrevê-lo seria reduzi-lo a uma palavra só, o que, evidentemente, pelo que discutimos acima, é arriscado, redutor, bacoco.

Quando o protagonista, homem, como ficou claro pelo artigo que precede a palavra que por si só não tem género, benditos os artigos, chegou ao escritório numa manhã comum de novembro, notou que foi o primeiro a fazê-lo de todo o edifício. Estavam as persianas fechadas, as luzes apagadas, burburinho nenhum, um autêntico museu de ideias do dia anterior pairando no ar rarefeito, e mais do que tudo depois de introduzir o seu código pessoal a luz do alarme geral do edifício resolveu cintilar com uma cadência, digamos, alarmante. Nunca tinha este sujeito tido necessidade de desarmar o alarme do edifício. Chegava sempre tarde e a más horas ao escritório, o malandro; só agora a insónia o tinha forçado a deslocar a sua rotina mais para cima no dia quando visto como um pano de horas. Estava, pois, demasiado acima no pano e quase a cair, porque ao colocar o código de que se lembrava do seu onboarding há mais de um ano, este não teve sucesso. Por certo, este edifício não estaria equipado com os lasers especiais que apareciam nos seus sonhos quando era pequeno: vinha-lhe frequentemente ao pensamento a imagem de lasers sugando a vida de homens incapazes de desarmar alarmes, criminosos ou gente com má memória, que em vez de uma morte por overdose de benzodiazepinas ou paracetamol teriam a honra de deixar escrito nas campas, Morreu atingido por um laser por não saber o código de um alarme. Fascinante, ainda que com o seu quê de macabro. Voltemos ao que estávamos a dizer. A primeira tentativa foi um falhanço, estava quase sendo chamado um servidor cuja ação seria acionar uma campainha estridente e realmente assustadora, quando o protagonista foi interpelado por uma voz profunda, vinda de fora, estaria a porta aberta?, não é claro, que dizia, experimenta 5155. Desesperado, acabou por digitar 5, depois 1, depois 5, depois 5, depois OK, e este código mágico desarmou o alarme. Ufa!

Seguia-se, agora, uma viagem curta até ao segundo andar. Tinha o segundo andar todo para si, como teria os outros, mas, para todos os efeitos, importava-lhe somente o segundo, onde desenvolvia o seu ofício. Subiu tranquilamente as escadas, digitou o seu código pessoal à entrada da sala, e foi rejeitado. Tentou uma, duas, três vezes, foi de novo rejeitado. Então, como sabia que não havia tentativas máximas, uma vez dentro do edifício, nos dispositivos de introdução de credenciais de acesso a salas, tentou o seu código em todas as outras. Foi rejeitado, rejeitado, rejeitado, até que acabou por entrar numa sala qualquer do primeiro piso; estava escuro, mas com alguma luz das janelas entretanto desimpedidas foi-lhe possível visualizar um fenomenal quadro branco onde começou a desenhar uns rabiscos de uma arquitetura de um produto que julgava desconhecer. Pedro!, que fazes tu aqui a estas horas?, Pedro?, Sim, Pedro, madrugaste, hoje, quem te anda a tramar o juízo, problemas com a patroa?, que patroa, pensou ele, cria que a sua relação era pouco conhecida, A tua mulher, pá; ele aqui gelou, e ainda tecnicamente estávamos no outono, Essa rapariga grande que te deu outra pequena. Quase em pânico, Pedro leva a mão à carteira, encontra junto desta uma chave de um carro de cilindrada respeitável, olha para a sua face no cartão de cidadão, não é ele, não é ele, corre para um espelho, que mal estava a funcionar o espelho e o mundo, que cara era aquela?, o protagonista já não era o protagonista só, era o protagonista-Pedro, casado e pai de uma rapariga pequena.

À protagonista-Maria sucedeu basicamente o mesmo. Uma voz profunda indicou-lhe um código misterioso à entrada do edifício, no dia seguinte, e ela rapidamente tomou outras proporções, encarnou noutro corpo, tornou-se Maria. Maria era mãe de um rapaz, divorciada, a que chegou ao final do dia quando regressou à sua casa nos subúrbios. Quase no Natal, não sabia o que dar ao filho. Ele era um rapazinho alto, muito bom aluno, honesto e obstinado; ela era apenas sua mãe, e qualquer prenda que lhe desse seria uma desilusão. Conhecia-o, não seria isto desculpa: a substituição encarregou-se de dar a estas cobaias humanas outras memórias de vida e conhecimentos alargados da pessoa que eram agora. O problema era que não podia permitir sentir-se mal com, uns anos mais tarde, a tragédia que seria recordar uma prenda banal e sem significado. Assim, acabaria por não lhe dar coisa nenhuma, com a certeza de que o rapaz seu filho jamais contaria na escola, A minha mãe banal deu-me um presente banal. Não: ela procurou um presente com significado e não teve condições de dá-lo, ou não havia mesmo significado no mundo.

Pedro e Maria olhavam-se e viam pessoas diferentes, e ainda que houvesse uma energia estranha no ar, definitivamente, a sua história era um artefacto do passado. Para Pedro, a vida é boa. Perdeu chama, mas ganhou corpo, direção. Maria ganhou, pelo menos, uma casa. E nós, nós ficamos com outra história e uma vida por viver, que ainda não fomos atingidos por lasers.