Padrões de reação / Ruminações de um cão

Se — ou quando eu — noto o meu corpo a vibrar, atento por reflexo no número de vezes em que acontece e no espaçamento entre estas para apurar como hei de me sentir. Se vibro uma ou duas vezes, haverá um problema ou terei vibrado em vão; escolho entre ansiedade ou desconsolo, ora porque estou distante e tudo o que faça será inútil, ora porque sou incompetente e incapaz de construir a minha própria paz. Se vibro sete ou oito vezes, instala-se em mim uma fulgurosa felicidade que no entanto não há de durar porquanto entretanto sou forçado a voltar ao que estava a fazer e choco violentamente contra a realidade.


Ser cão é desgastante. Ontem, naquele que tinha tudo para ser um dia normal, dei por mim com uma vontade inescapável de voar. Apoderou-se de mim uma destreza tal que bastou que pressionasse ao de leve as patas contra o chão, agachado, para que voasse num ângulo quase reto em direção à figura de nossa senhora, que por certo estaria a tentar abençoar estas bandas e os meus companheiros caninos, ora, sabe ela como isso me irrita, não precisa ninguém de ser abençoado, e foi mais que merecido o que lhe sucedeu a seguir. Agarrei-lhe na perna esquerda com a minha bocarra e desmanchei-lhe as meias de vidro; ela com a sua mão divina ainda tentou esmurrar-me o focinho, mas falhou tragicamente; ágil, desviei-me e continuei infligindo toda a dor que ela merecia por se intrometer no meu dia. Arf!, despedi-me enquanto ela ia ganindo como nem eu cão sou capaz de fazer.

Naturalmente, após sonhos pesados, um cão há de acordar desorientado. Perfiz o quintal em círculos umas cinco ou seis vezes, a fim de substituir a moleza por alguma tontura que me despertasse. Uma vez pronto, fui assolado por uma fome injusta, que fiz eu para ter fome e ter de comer para viver; julgava pelo menos ter um banquete decente à disposição na minha habitação, mas não, tinha de ser, ninguém quer saber de mim, deixaram-me ração de marca branca, depois queixam-se que não sirvo para nada. Já tanto ouso, alimentado desta forma miserável, inclusivamente vou ao céu fazer justiça, e se não quisermos reduzir o meu portefólio de habilidades a essas incursões no mundo da imaginação, importa realçar que também ladro como os cães normais aos transeuntes que passam aqui por casa. Como gosto de os assustar com os meus latidos profundos! Principalmente os personagens que vão de fones, esses, mais que os outros, tendem a ficar verdadeiramente aterrorizados, porque olham e ouvem pouco, e não percebem em tempo útil que eu não represento grande ameaça. Estas são as pessoas a quem me dá mais gozo ladrar.

Como cão livre, por vezes fujo de casa e vou caminhar pelas redondezas, conversar um pouco com amigos, exercer os meus direitos fundamentais. Acha o meu dono frequentemente isto uma falta de respeito, pois eu também acho pouco respeitoso que ele se ache meu dono, ou insista comigo para que perceba os seus dizeres, como se quando eu digo Arf! Arf Arf ele entenda patavina do que a isto se refere. É uma luta desigual. E para acrescentar a isto, enquanto escrevo, ele vai fazendo festas a um gato, e ele sabe que eu detesto gatos. Não só sou forçado a correr em direção a eles pela minha natureza canina, como me irrita a elegância que eles demonstram com o seu andar suave, elegância que eu nunca terei porque sou um cão sem raça de porte médio a grande. Não me foi gentil a genética, e ainda tenho de assistir a estas situações lamentáveis. Como hei eu de não fugir? É desgastante.