Paçô Vieira

Longe vão os tempos da meninice em que fazia Felgueiras-Guimarães fim de semana sim, fim de semana sim, pois num daqueles concelhos dormia e noutro a vida acontecia. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas isto não impede um homem de eventualmente desejar em dia comum pouco útil deslocar-se umas horas ao passado para comer um gelado e assim sentir-se satisfeito consigo mesmo como antes sentia, ou crê que sentia tendo-se passado estes anos e estando a memória esticada e glorificada como artifício de suporte ao presente. Era precisamente com isto que me debatia enquanto conduzia, estava serena a viagem, ao ponto de a sequência clássica de curvas e contra-curvas de estrada nacional, a certo ponto, estar a ser objeto de prazer. O único entrave para uma viagem perfeita viria a ser os travões; estavam naquele dia mais fracos, menos precisos, alongavam-se um pouco de mais na sua função primeira que é a de travar, mas, deslocando-me apenas ligeiramente acima do limite de velocidade, não iria isto com certeza colocar nenhum problema de força maior.

Quase na rotunda de Paçô Vieira, aparecem dois veículos muito próximos, tendencialmente parados na estrada; duas marcas de segurança à frente, um outro vai a conduzir a uma velocidade razoável; creio que se reúnem condições para uma ultrapassagem divertida. Assim, coloco-me em modo sequencial, reduzo e acelero o mais que posso, mas em sentido contrário vem outro carro, que naturalmente não via pela curvatura da estrada; entro em pânico e precipito o volante todo para a direita para me colocar de imediato na via de que não devia ter saído. Acabo por conseguir endireitar o carro, sem provocar dano algum nos carros de trás, que efetivamente estavam a andar, ao contrário do carro da frente que me forçou a prensar o travão com todas as minhas forças, procurar desesperadamente o travão de mão na consola central, rezar aos vários deuses do universo, o que não me bastou para que evitasse bater ligeiramente na sua traseira. Bolas! Não tendo sentido dor, teria de desembolsar uma quantia dolorosa no mecânico. Como se transforma um dia banal num dia desagradável, disse de mim para mim.

Umas horas depois, todos os jornais nacionais abrem com a notícia da morte de um homem de sessenta e sete anos em Paçô Vieira. Aparentemente, tinha sido violentamente atingido por trás, e não resistiu aos tratamentos dos médicos no local. Mais, convoca-me uma mensagem do meu advogado, que me recomenda calma e me informa que, apesar de a probabilidade de condenação por este crime ser baixa, não devia evitar o julgamento, por questão de carácter e manutenção da sensação de justiça nos concelhos.

Regressado ao local, fito a família da vítima, cabisbaixo, e sou levemente espancado. Questionam-me acerca da minha vida futura após este acontecimento, ao que respondo com silêncio, e deixo no olhar escritas duas ou três frases que traduzidas seriam algo como Não vejo futuro, Não vejo futuro depois de matar um homem.