O orador

I.

A julgar pelo facto de o despertador ter tocado à mesma hora, a meteorologia ter respeitado honrosamente o trabalho de todos os meteorologistas, podia dar-se o caso de este dia ser apenas mais um no meio de muitos para Pedro, que acaba de acordar e se encontra agora a preparar-se para o banho, que religiosamente toma pela manhã antes do pequeno-almoço e a que se segue uma deslocação de transportes públicos para o escritório onde passa o dia a escrever. Poderíamos analisar se faz sentido que o banho se tome apenas e só de manhã e não à noite, ou se existe a necessidade absoluta de tomar o pequeno-almoço em casa, mas isto já Pedro faz no banho, e fá-lo-á melhor e mais profundamente que nós, tal é o tempo que passa debaixo do chuveiro. Merecido, diz de si para si. O trabalho que desempenha é desgastante o suficiente para se poder dar a um prazer da vida como este, ainda que em prejuízo do planeta que é de todos nós, mas não é de ninguém, porque a natureza é apenas natureza e qualquer abstração impingida pela sociedade é no mínimo supérflua, para não dizer sobranceira.

Pedro é orador. Para sermos mais precisos, é orador político: após anos de inércia e desmesura na esfera do poder apenas por se privilegiarem bons oradores em detrimento de intelectuais com visão, decidiu-se finalmente no mundo que havia chegado a hora da inteligência e se devia deixar a arte oratória para quem realmente se especializa no ofício de falar, escrever discursos e apelar a massas. E o nosso protagonista, como oportunista que é, no bom sentido da palavra, é importante deixar claro, pois a vemos empregue tantas vezes em contextos em que esta sai depreciada, foi dos primeiros no país a desempenhar um cargo tão nobre como este. Deixou na altura a rádio, ligou ao primeiro-ministro e, com meia dúzia de palavras bonitas, convencera-o de que ganharia as urnas seguintes com maioria absoluta se sua excelência o encarregasse de escrever os seus discursos e dar a cara por estes nos grandes comícios partidários que se avizinhavam. A princípio, as gentes estranharam que o primeiro-ministro se resguardasse, correu de norte a sul um burburinho nervoso a apontar para uma possível maleita fatal daquela figura do Estado, primeiro veiculada pelos média sensacionalistas, depois reproduzida nos restantes por falta de contraditório. Não havia que contradizer, defendia o primeiro-ministro. Pedro vinha para revolucionar a arte de fazer política, com o seu jeito de fazer política sem ser político e deixando a política para os políticos que agora eram só políticos e não oradores. E que bem que isto correu. O partido do poder ganhou mais poder, com uma maioria de metade mais um, bendito método d’Hondt, e Pedro ficou efetivo como braço direito e representante máximo do líder do governo.

Estando o banho tomado, o contexto do herói devidamente visitado e saltando-se o imemorável pequeno-almoço, fazendo uso da nossa omnipresença e naturalmente do facto de tudo isto estar a ser fabricado em meia dúzia de horas para deixar materializados dois ou três pensamentos, estamos agora com Pedro na estação de comboios. Como sempre, fascinado pelo momento ou pela ideia de apanhar a carruagem, sobretudo pela eficácia cirúrgica da engenharia que o torna possível, o nosso homem caminha satisfeito para junto da linha extensa que encarreira para o seu escritório. Esta satisfação é tipicamente limitada no tempo, porquanto ele é muito dado a ruminações existenciais aquando das viagens, em que tende a ter-se pouco em conta e cogitar consigo mesmo sobre as circunstâncias que levaram a uma série de outras circunstâncias que por vezes lhe tiram o sono, como o pai ter-se reformado demasiado cedo e movido para o campo a que lhe é complicado aceder de comboio, a mãe constantemente oscilar entre a indiferença e a consternação perante as ações que ele compra no mercado bolsista, a rapariga o ter deixado sem grandes explicações, para ficar sozinha, ainda por cima para ficar sozinha, teria mais respeito pela decisão se escolhesse alguém em vez dele, agora preferir ninguém a ele, é algo que impreterivelmente lhe tira o sono. Por tudo isto, os comboios são para ele um misto de excitação e melaconcolia. Ele sabe disto, e não raras vezes extrapola esta adjetivação para fazer uma analogia com toda a vida que vive, e com isto sente-se poderoso e filosoficamente estável, não obstante desconcertado com tamanha ambivalência. Afinal, dado que chega a um estado de clarividência notável, que muito preza, talvez se tenha em conta, ainda que por meios muito pouco convencionais ou convencionados pelos livros de psicologia. Mas Pedro não é psicólogo, muito menos jurista ou sindicalista, que seriam úteis neste cenário que quase ficava esquecido e que tem a ver com a extenuante greve de comboios que aparentemente é nacional e colocou letras grandes no placard junto à linha com a triste informação de que o seu comboio havia sido cancelado. Não jurista, não sindicalista, mas assessor e braço direito do primeiro-ministro, apressa-se a ligar-lhe diretamente, na esperança de que este magicamente ordene um tipo especial de serviços mínimos que por algum motivo mágico fizessem o seu comboio aparecer, e para isto teria este literalmente de cair do céu, porque há muito teria de ter saído da estação inicial, para passar nesta paragem a esta hora da manhã, mas vê a sua chamada recusada. Arr! Estaria o primeiro-ministro confortavelmente a beber um sumo junto à praia com um outro assessor, e por respeito à pessoa à sua frente, havia deixado o telefone no bolso. O raio do primeiro-ministro com os seus modos e a sua forma razoável de agir na vida! Agora, com o seu trabalho, ainda mais feliz andava o homem, porque se focava naquilo em que era realmente bom, não era mais troçado nas redes sociais pelo seu sotaque pouco litoral, e tinha mais tempo para a família com quem porventura se dava decentemente. E era esta a recompensa que lhe dava, recusar a chamada! Enfim, tendo-se passado isto, Pedro tenta aceder ao homem da bilheteira, que apareceu ao balcão com um ar muito sisudo por inveja dos maquinistas que se preparavam para preencher o seu dia barafustando em praça pública bebendo umas cervejas enquando ele teria de atender o público consternado e sem cerveja nenhuma para beber ou para dar para acalmar. Nos primeiros instantes, o homem mantém o semblante que acabamos de descrever, mas à medida que Pedro se aproxima da bilheteira, fica até um pouco excitado, porque o reconhece da televisão, e crê que o contributo que deu à política nacional, a mudança de paradigma que ajudou a alavancar, é de um proveito incomensurável para o povo. Bom dia, senhor Pedro, é uma honra tê-lo aqui, em que posso ajudá-lo, começa dizendo, ao que Pedro responde, Bom dia, estou indignado com esta situação, mas enquanto se prepara para continuar este raciocínio, sente um foco de dor lancinante na garganta, como que facas aguçadas cortando as suas cordas vocais, e a partir deste momento não consegue vocalizar mais nenhuma palavra.

II.

Nos dias que se seguiram a esta tragédia, Pedro inteirou-se do funcionamento do sistema nacional, da rede privada e do setor social dos cuidados de saúde a fim de tentar resolver este imbróglio que era nenhum medidor de decibéis mover um ponteiro quando ele tentava falar. Correu vários hospitais, falou com vários profissionais, de diversas áreas e convicções, e nenhum ousou sequer tentar adivinhar as causas de um acontecimento tão repentino como este, quanto mais delinear qualquer plano de tratamento. Restava-lhe pois aguardar alguns dias, visitar a junta médica uma ou duas vezes enquanto, quisesse a sorte estar do lado dele, a voz tratava de regressar. Não aconteceu. A cada dia que passava, Pedro perdia a esperança de que alguma vez voltaria aos grandes palcos dos comícios. E não demorou até que um dia acordou, tomou um banho e após um pequeno-almoco muito silencioso escreveu uma carta ao seu superior, a tal figura do Estado, explicando que a sua ausência se devia não a uma gripe sazonal mas a uma tragédia que o havia incapacitado permanentemente, ou pelo menos até ver, que era o mesmo nesta situação, de executar o seu ofício de bem falar. Do outro lado, o primeiro-ministro, certamente já com o sumo do outro dia tomado, responde-lhe abatido, lamentando a saída do seu staff de um dos maestros do seu sucesso.

Havia agora, invariavelmente, que aprender a viver a vida sem voz, para Pedro, que começava por mudar de profissão mas também comunicar de um modo totalmente exótico, aos olhos dele, com qualquer pessoa que habitasse o mesmo solo que ele. Já na casa dos trinta, feitos não há muito, não seria fácil a Pedro aprender linguagem gestual, nem totalmente coerente, afinal, ouvia perfeitamente, era mudo, não surdo, e não daria para se aprender linguagem gestual sendo apenas doente pela metade. Engraçada, esta ideia, pensa para si mesmo enquanto a desencanta na rua, e tenta desviar-se da tristeza que se vai apoderando dele enquanto processa tudo o que está a acontecer. No meio disto, quase é atropelado, porque se esquece de olhar para a cor do semáforo dos peões que aparece junto a esta passadeira que utiliza alienado enquanto um condutor aperta o travão do carro e vê o seu coração ficar bem apertado porque não é muito boa pessoa mas não é má o suficiente para gostar de matar um homem. Pedro assusta-se um pouco, também, tropeça numa beata de cigarro, cai de braços felizmente já no chão pedonal do outro lado da estrada e repara que lhe cai do bolso uma caneta carregada de tinta azul e um papel muito pequeno já amachucado e rijo por ter ficado esquecido entre lavagens.

III.

No final da semana, Pedro recebe uma chamada do pai do campo. Invariavelmente, tomado por uma vergonha que o arrepia por não poder intervir numa chamada telefónica, e não querendo fazer sofrer o pai pela sua condição, deixa entrar o voicemail. Minutos depois, recebe uma chamada que o remete para o voicemail, num processo que ainda permanece inalterado, que é uma construção frásica tão redundante quanto esta indireção comunicacional, e no voicemail o pai diz, arrastando ligeiramente as palavras, Filho, espero que estejas bem, é meu dever informar-te que me divorciei da tua mãe, não pude mais com a sofreguidão dela, é com muita pena que faço isto, e com muita pena temo que pudesses ter evitado isto, se tivesses estado minimamente presente em todos os momentos em que ela sentia a tua falta e descarregava em cima de mim, e depois quando vinhas sentia a minha falta porque me tornei ausente e descarregava em cima de ti, e de tempos a tempos para variar descarregava sempre em cima dela mesma, filho, é uma vergonha o que fizeste à tua família, apesar do estatuto público que tens, e da qualidade inegável do teu trabalho como orador, tenho vergonha de ti, és uma vergonha para esta família, por isso me movi para o campo e não planeio ver-te mais. Não sendo esta mensagem síncrona, Pedro tem tempo para escrever uma resposta mais calma do que o seu coração lhe permitiria agora. Assim o faz passados uns minutos, Querido pai, tenho pena que penses dessa forma e lamento profundamente o sucedido, saibam que estarei sempre disponível para vocês independentemente do que se passou. Assina simplesmente Pedro, sai de casa com um andar pouco preciso e enfia esta carta no posto de correio que é quase tão diminuto quanto a honestidade do que colocou lá dentro.

No mesmo dia à noite, Pedro decide sair um pouco. Vai sozinho, numa jornada que tem tanto de empoderada como de decadente. De qualquer modo, esperam-no as luzes da cidade e tudo que possa acontecer debaixo destas, se houver fulgor para converter a luz em histórias. Desce pelas ruas estreitas da cidade até à baixa, e ninguém o reconhece. Apenas consigo mesmo, tem algum tempo para refletir nas mudanças que terá agora de executar na sua vida e na quantidade de passado que terá inevitavelmente de enterrar, agora mudo e longe da ribalta política.

IV.

A noite não correu como Pedro esperava. Sentou-se num bar uns minutos, bebeu um fino, deu uma volta pela praça central da cidade, e não teve energia para dar continuidade ao seu plano de fuga à realidade. À realidade voltaria muito brevemente. Caminhou pelas ruas acima, da baixa para a sua casa nas redondezas, não lhe saía da cabeça a frieza do pai, a injustiça das suas palavras, enquanto pensava isto ia sendo tomado por um remorso miudinho, uma sensação de querer desaparecer, até que fitou uma rapariga sentada num banco de um jardim, visivelmente fatigada, como se lhe tivessem sugado a vida do corpo. E como a vida é curta e curtas são as expectativas de Pedro para o seu futuro, não tem nada a perder, pelo que toca apressado com as mãos no casaco denso que leva, e a tristeza dá-lhe tréguas um pouco quando sente a caneta de tinta azul e o papel amachucado que havia apanhado do chão uns dias antes. Começa por escrever, Desculpa incomodar-te, estás bem, mostra o papel à rapariga, que se assusta, naturalmente, mas tem a bondade de perguntar, com a voz, Porque escreves, ao que Pedro responde com a descrição mais minuciosa que conseguia elaborar do estado caótico da sua vida. E assim, um escrevendo, outra falando, dois estranhos ficaram nessa noite um pouco menos estranhos.

Matilde era enfermeira no centro de saúde da cidade. Usava uma camisola de malha rosa-escuro, fenomenal, que Pedro a certa altura tocou ao de leve. Matilde não tocou em Pedro com as mãos. Irmã de dois irmãos, vive ainda com os pais por falta de meios. Vive há anos num rodopio casa-trabalho, e ainda que goste do que faz, não se sente compreendida por ninguém, afirmação que Pedro comenta, És compreendida pelo menos pelos teus pais, Não creio, ele franze o sobrolho, mas para respeitar a sua opinião, remete-se ao silêncio. Não poderia fazer de outra forma, se quisermos ser minimamente fiéis à realidade, pelo que acrescentaremos antes, remete-se à ausência de palavras. Não eram precisas palavras, ou não havia palavras, porém, para descrever a química que os dois sentiram ali, naquele encontro espontâneo, enquanto olhavam um para o outro e sem querer deixavam escapar sorrisos envergonhados, poderíamos dizer, como naqueles filmes em que se dá a entender que estão destinados a estar juntos, mas, para poupar o leitor, evitar estes saltos de fé geralmente irrealizáveis, digamos apenas que protagonizaram ali uma cena bonita.

A inevitável questão do segundo encontro não era de resposta óbvia. Para o Pedro figura pública, seria relativamente simples deixar claras as suas intenções, mas não tinha voz, não tinha futuro, não sabia se devia sujeitar Matilde a este caos. E para Matilde, desacreditada no amor, imersa numa rotina apesar de tudo confortável, seria estranho confiar num desabilitado. Por conseguinte, ficou tudo por decidir, despediram-se com um beijo curto, Matilde regressou a casa incrédula e Pedro satisfeito consigo mesmo.

V.

Um dia, enquanto os dois fazem amor, Pedro decide acrescentar algo útil. Pega na caneta, qual homem multifunções, e escreve em letras garrafais, Tenho uma pergunta para ti, Matilde fica pasmada, está ocupada, como é evidente, mas até lhe vem uma certa excitação, pela peculiaridade da situação, Diz-me, meu amor, ao que Pedro responde escrevendo, Matilde, vamos fazer um filho, o que a deixa agitada, Porquê agora, Tenho algo a provar, e ela debulhada em lágrimas tenta responder a isto mas do nada sente um foco de dor lancinante na garganta e fica sem voz.