Mariana

Engarrafada no trânsito, porque os políticos são inertes, um artista escorregou num pedaço de óleo, ou uma relíquia decidiu preparar-se para um museu, Mariana tenta viver este momento com normalidade. Passou pelo café, bebeu um café, à hora do lanche, comeu um lanche, tem a rádio a um volume pouco recomendável e planeia sair de casa, logo, beber algo doce, estar bem, estar tranquila, fazer-se bem. Este trânsito, no entanto, promete estragar-lhe os planos. Para tornar o seu final de tarde ainda mais comovente, um aguaceiro decide mostrar-se. Não chegará a casa tão cedo. Por um lado, isto é fenomenal - não tem de falar com ninguém -, por outro, é talvez o pior que lhe podia acontecer - não pode falar com ninguém. Não surpreende nem a si própria que tenha a cara humedecida. Olha-se pelo espelho, não sabe o que vê. Não sabe se se perdeu, se se perderá, que mulher é agora ou conseguirá ser para os seus. Carlos relembrava-lhe sempre que o futuro ninguém tem, e não há que temer nada senão o presente. Dizia-o com tamanha leviandade, apercebe-se agora, até um desprezo subtil pelos seus sentimentos, pela dúvida que por vezes se instalava em si e que culminou no estado das coisas. Dizia-o leviano e seguia altivo para os afazeres dele, que com certeza podiam esperar mais um pouco, se ela era assim tão importante para ele. Não seria, claramente, tal a falta de compaixão que imprimia nas coisas. Talvez Mariana pudesse ter falado sobre isto, noutro tempo, noutro lugar, noutra altura, mas a nada disto chegou antes do estado das coisas. Naturalmente, podia não ter valido de nada. A vida é uma soma de decisões mas também de circunstâncias imprevisíveis. Talvez devesse ligar-lhe. O trânsito dá-lhe tréguas. Rebocaram já o carro da frente. E ela segue em frente, porque para a frente é o único caminho.