I.
Carlos chega atrasado, suado, e senta-se de qualquer jeito. Mal me olha nos olhos. Falamos ainda esta semana, se não me falha a memória, há três dias, e vi nele o homem de sempre, o carismático obstinado e apaixonado pela vida, apaixonado por fazer acontecer, mas hoje quem terá de fazer acontecer serei eu, tal é a desolação que Carlos está prestes a colocar em cima desta mesa.
II.
Carlos viu a vida mudar ontem. A sua relação de média e comovente duração é agora um pedaço do passado, resultado de uma conversa fragmentada, duas ou três justificações vagas, uma referência a objetivos desencontrados e uma lista de episódios que chega tarde no tempo. Este homem sente que o amor da sua vida lhe foge por entre os dedos e enuncia-me os momentos de glória que ele e a agora ex-companheira viveram, aqui, ali, de manhã, pelo final da tarde, de madrugada, em praias, florestas, carros, salas de jantar, salas de cinema, e as noites, todas as noites em que dormiu agarrado a ela e à certeza de que não viveria sozinho o dia seguinte, e os olhos, os olhos grandes e azuis dela.
Vão querer café?, interrompe-nos a funcionária, Sim, são dois curtos.
III.
Carlos, não posso deixar de te dizer isto, o que tu sentes é válido e é natural que estejas incrédulo, que nada te faça sentido aqui, agora, mas repara que há coisas que não se explicam, que são inconscientes, e se houvesse nela uma réstia de esperança, não estarias perante mim nesta mesa, estarias perante ela, resolvendo a situação, não estando, resta-te guardar esta história no teu coração e seguir em frente, porque estás vivo, Carlos, estás vivo!, Não estou, não estou vivo sem ela, ela é especial, como não percebes isso?, Não disse o contrário.
IV.
Ainda que não totalmente convencido, Carlos fica agradecido pelo meu tempo. Lamento que não tenha acabado o seu café, mas compreendo que esteja consumido por preocupações maiores.
Levanta-se, mais calmo, e dirige-se ao balcão. Enquanto conta os trocos, troca um olhar rápido com a funcionária, e esta troca-lhe os trocos por um sorriso, deixa a mão na dele um pouco mais do que o necessário e não lhe sai da cabeça no trilho que leva de regresso a casa.